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Interpretação e Contexto Histórico: Cálice — Chico Buarque

Alô, pessoas! 
Cálice é uma das músicas mais icônicas de Chico Buarque e um dos grandes hinos de protesto durante a ditadura militar. Originalmente escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil, em 1973, essa música aborda um tema muito polêmico da época: a censura e a opressão. A década de 70 é considerada o pior período da ditadura militar no cenário brasileiro, afirmando que o governo de Emílio Garrastazu Médici foi o mais rígido e mais violento. 
A censura estava presente no Brasil desde 1968 e, por isso, as letras das músicas precisavam ser repletas de figuras de linguagem que conseguissem esconder todas as críticas contrárias ao governo e enganarem os militares. Mas Cálice foi uma manobra arriscada, já que, mesmo que tenha várias figuras de linguagem, a música ainda mostrava uma angústia e uma raiva em cima do governo. Isso fica muito claro nos versos "de vinho tinto de sangue", "tanta mentira, tanta força bruta" e "como é difícil acordar calado".
Obviamente a música foi vetada, mas o fato dela ter sido vetada e relativamente fazer críticas diretas aos militares, só enfatiza a questão de que várias partes da música dialogam com trocadilhos como "cálice" e "cale-se", que são cantados de forma variada, como se o "cale-se" interrompesse a pessoa de dizer "cálice". Além disso, é importante destacar que a música também tem referências religiosas, sobretudo, Cristãs. 

É importante entender o contexto histórico que inspirou a composição da música, pois todos os versos se relacionam com inúmeros acontecimentos da época, como políticos, econômicos e sociais. 
Um episódio curioso desse período é o dia em que Chico e Gil foram cantar essa música em um festival em São Paulo, mas, ironicamente tiveram que cantarolar a melodia durante a música inteira, destacando apenas a palavra "cálice", já que acabaram sendo censurados. 
Esse período presenciado por muitos brasileiros na época é, sem dúvidas, uma odisséia, e interessante entender a forma de pensar dos compositores da época. 
Sem mais delongas, vamos à interpretação. 

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Aqui, o eu lírico critica a questão das muitas mortes causadas pela opressão gerada pela ditadura militar na época, implorando para Deus que afastasse, não propriamente de uma única pessoa, mas como de todos, um cálice que representa o sangue brasileiro de pessoas que sofreram nas mãos da ditadura. 

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Nessa estrofe, o eu lírico demonstra sua tristeza por ser censurado e idealiza uma realidade utópica onde as diretrizes da ditadura militar não estão aplicadas. E depois, no último verso, reforça a injustiça, corrupção e coerção comum daquele período.

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Ainda criticando a questão da censura, o eu lírico afirma que, apesar da censura, ainda é preciso protestar e gritar expressando toda raiva em cima de um governo opressor. E que, mesmo estando atordoado, é importante estar atento e não ceder, apesar de presenciar um momento hostil. 

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Agora a critica passa para a opressão e violência, e de que a realidade vivida na época estava começando a saturar de corrupção do governo e violência dos militares, utilizando o recurso de que tudo em exagero não é bom. 
Outra questão retratada nessa estrofe é que as pessoas tinham seus momentos de lazer e boemia, mesmo estando passando por momentos angustiantes de censura, como se, de forma obrigatória, tivessem que aceitar a realidade, embora ainda mantivessem um pensamento de que a democracia virá um dia. 

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

A última estrofe dessa música é a parte que grita e demonstra o desejo de acabar com aquilo tudo, exigindo a liberdade que muitos outros países têm, onde os cidadãos são livres até para morrer da forma que quiserem, criticando as formas de tortura da época. Nascendo, assim, nos últimos versos, um desejo "abaixo a ditadura".

É, de fato, uma música enigmática e aborda um tema forte, que nos faz refletir sobre como era o sofrimento e a angústia que era viver em um país com censura e sem liberdade de expressão, que controlava a arte e o que poderia ou não ser visto e ouvido pelas pessoas. 
Eu, a autora, já falei sobre a música durante a ditadura militar  , e nesse artigo estão mais detalhes que contam com clareza a situação de censura da época. 


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